O Intruso!

 "Ficções

Eu vi você em frente à escola, com um novo penteado, pronto para pegar o ônibus. Mas eu vi você deitado no chão, enrolado em um cobertor, se decompondo, esperando morrer. Mas eu te vi naquela casa, catando lixo, com autonomia. Eu te vi no hospital, Mateus, com os dentes quebrados, com sangue, com dez anos nas costas passados em um mês. Eu vi você na esquina, como uma placa, como uma sina. Eu vi você, Mateus, eu vi você. 

Eu vi Mateus por toda parte, pois em toda parte há o assombro que é o seu corpo e o seu nome, sangue e trovão. São os medos mais vivos de toda criança, são aquilo que eu, garoto, não queria ver. Mas teu nome nem existe, Mateus. Teu nome é a ficção que um jornal vendeu, e que eu comprei como se fosse um filme de terror. Teu nome não é teu: está vendido, está guardado numa lápide de pedra, está nos ventos que derrubam o galho do pinheiro cortando a luz. 

Eu vi teu nome no jornal, mas vi também naquele filme, naquele baile, naquele poema. Eu vi teu nome em toda parte, mas o nome não era teu. Eu vi você correndo no fim da rua, eu vi você comendo uma marmita fria. 

Mas você nunca existiu, Mateus. Você é aquilo que eu escrevo. Só vive em minha mente, em meu texto, por minha vontade. Você é só um nome, e teu corpo, que vejo no lixo, na calçada, no hospital, na escola e no espelho, ele também é só o cachorro que vaga pelas paralelas. Você me assusta fuçando uma lixeira na noite fria, e eu pulo vendo você: você  é o cachorro, abrindo satisfeito uma sacola. Eu te vejo, Mateus, mas não é você. Pois você é a ficção inacabada, é o delírio de minha escrita, é o nome que eu dei aos fantasmas que me assustam. Você é  o medo tomando forma e coração. Eu te escrevo, Mateus. Mas tua vida longe das minhas palavras eu não controlo, nem posso prever. Tua vida fora daqui é um enigma, pois você não existe. Eu quero, mas não posso escrever teu destino. 

Há ficções que não podemos controlar."


Esse é um fragmento do livro que o meu amigo e escritor Marco Aurélio de Souza escreveu. Ele me chama Mateus porque quando a narcóticos estourou minha casa e me coagiu a fazer uma matéria num jornal local eles falaram que me chamariam com esse nome para me preservar! E me perdoem, mas os direitos autorais estão reservados a editora e não podemos disponibilizar a obra na íntegra aqui.

Comentários

  1. Quando conheci o Reinaldo, ele já estava num momento muito difícil em relação ao vício. Nunca me escondeu os seus problemas, e às vezes contava alguma mentira para conseguir um dinheiro emprestado - como é comum entre os dependentes químicos. Eu sabia quando ele estava mentindo, pois o olhar de desespero de quem está buscando alívio nas ilusões químicas sempre denuncia as suas reais intenções. Apesar disso, construímos uma amizade cultivando bons sentimentos onde eles eram possíveis (e toda pessoa, em qualquer circunstância, sempre possui alguma região fértil para o cultivo dos bons sentimentos, pois é isso que nos revela humanos).

    Depois que sua mãe faleceu, porém, apesar da tentativa de alguns amigos de fortalecê-lo, Reinaldo mergulhou profundamente na dor daquele luto, e fez isso através de uma flagelação que ele já conhecia muito bem: entregando-se para o crack. Nesse período, ele passou a ficar cada dia mais incomunicável, pois se desligou do mundo que compartilhávamos e, até onde fiquei sabendo, passou a viver nas ruas, passando por dificuldades terríveis. A última notícia que tive dele naquele ano foi através de uma reportagem de jornal, onde ele era chamado de Mateus e reclamava a falta de assistência que o poder público destinava às pessoas que vivam aquela doença.

    Este livro, O Intruso, um romance psicológico que se utiliza de personagens verdadeiros, foi minha tentativa de expurgar os sentimentos de culpa e impotência que experimentei ao ver meu amigo cair daquele jeito. Eu queria, sinceramente, fazer algo para ajudá-lo, mas não sabia mais o quê, não sabia como, não tinha força nem inteligência para resgatá-lo daquele pesadelo. Então, para que aqueles sentimentos ruins não me consumissem, pus-me a escrever o livro, que foi lançado em 2013, quando ainda não tinha notícias de Reinaldo.

    Durante muito tempo, tive receio do que o meu amigo acharia desse livro. Medo de que ele o interpretasse como um uso oportunista de nossa amizade, intenção que jamais tive. Foi um alívio quando, ao nos reencontrarmos algum tempo depois, contei pra ele do livro, ele o leu e o aprovou. Não por uma questão de vaidade, mas porque o livro elabora a necessidade que todos sentimos de nos conectarmos às pessoas, algo que o vício nos priva, pois a dependência nos conecta somente a uma substância química, afastando-nos do sagrado convívio humano.

    Este livro, ao fim das contas, é sobre isso: sobre a falta que, naquele momento, o Reinaldo fez em minha vida, pois eu precisava dele tanto quanto ele precisava de mim, eu precisava dele são e salvo, pois isto me faria renovar minha crença em milagres, minha crença na força que todo ser humano tem, no poder de cura que todos temos dentro de nós mesmos. As coisas, porém, nem sempre saem como a gente espera, e talvez o Reinaldo precisasse de todo esse inferno para encontrar, ao final, alguma luz. Foi o que pensei quando tive notícias, dessa vez pela internet, do meu amigo que nunca desiste, que agora estava casado e integrando uma linda família, lutando por uma vida de paz e felicidade, superando todas as dificuldades aparentemente intransponíveis que o faziam sofrer.

    Do fundo do meu coração, desejo a você, Reinaldo, tudo de melhor que a vida puder lhe oferecer. Mas, antes de qualquer eventual conquista, felicito-o pela mais importante de todas: nas condições mais adversas possíveis, você teve a coragem e a força de buscar dentro de si mesmo aquela brasa que nunca se apaga: o amor verdadeiro, que é o amor a Deus, à humanidade, a si mesmo e aos seus iguais. Que você continue alimentando essa brasa, até que ela cresça e se torne uma imensa fogueira, incendiando todos à sua volta, é o que espero de ti, pois sei que a sua fé já moveu uma montanha, meu amigo, mas ainda fará muito mais.

    Com amizade, gratidão e admiração,
    do seu amigo Marco Aurélio de Souza

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